29.7.09

São José Maria Escrivá - Modelo de Vida Sacerdotal


Identidade do sacerdote

Começarei a minha intervenção com umas palavras que S. Josemaria costumava dirigir aos recém ordenados, mas que nos servem também – e talvez mais especialmente – a nós que contamos muitos anos de sacerdócio. Dizia: «sede, em primeiro lugar, sacerdotes; depois sacerdotes; sempre e em tudo, só sacerdotes». Nesta afirmação transparece o seu altíssimo conceito do sacerdócio ministerial, pelo que uns pobres homens – que isso somos todos diante do Senhor – são constituídos servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus (1 Cor 4, 1). Tão firme era a sua fé na identificação sacramental com Cristo que se leva a cabo no sacramento da Ordem, que o seu único sinal de glória, ao lado do qual empalideciam todas as honras da terra, era simplesmente ser sacerdote de Jesus Cristo.

Os santos, desde os tempos mais antigos, têm comentado a dignidade do sacerdócio. Vários Papas – entre os quais recordo especialmente S. Pio X, Pio XI e o actual Romano Pontífice – escreveram documentos inesquecíveis, que têm alimentado e continuam a alimentar a nossa vida sacerdotal. Também S. Josemaria nos deixou o seu ensinamento. Numa homilia de 1973, quando se espalhavam vozes confusas sobre a identidade do sacerdote e o valor do sacerdócio ministerial, resumia o seu pensamento com as seguintes palavras: «esta é a identidade do sacerdote: instrumento imediato e diário da graça salvadora que Cristo ganhou para nós. Se se compreende isto, se isto é meditado no silêncio activo da oração, como se pode considerar o sacerdócio uma renúncia? É um ganho impossível de calcular. A Nossa Mãe Santa Maria, a mais santa das criaturas – mais do que Ela, só Deus – trouxe Jesus ao mundo uma vez; os sacerdotes trazem-no à nossa terra, ao nosso corpo e à nossa alma, todos os dias: Cristo vem para nos alimentar, para nos vivificar, para ser, desde já, penhor da vida futura»


O sentido da grandeza do sacerdócio levava-o a cuidar com esmero a sua vocação sacerdotal, da qual se encontrava cada vez mais enamorado. Quando, para atender aos pedidos dos que estavam ao seu lado, se referia às vezes ao processo da sua vocação, sempre fazia sobressair a iniciativa de Deus, que lhe saiu ao encontro quando tinha quinze ou dezasseis anos. Como bem sabeis, foi em Logronho, em Dezembro de 1917 ou Janeiro de 1918, onde o adolescente Josemaria Escrivá teve os primeiros pressentimentos de que o Senhor o chamava para algo que não sabia o que era. Não lhe tinha passado pela cabeça a possibilidade do sacerdócio. Contudo, perante essa acção de Deus, com o fim de melhor se preparar para cumprir a Vontade divina, decidiu ir para o Seminário. Com toda a verdade podia afirmar, passados os anos, que o começo da sua vocação sacerdotal tinha sido «uma chamada de Deus, uma suspeita de amor, um enamoramento de um rapaz de quinze ou dezasseis anos»

No Seminário de Logronho recebeu a primeira formação sacerdotal, que depois completaria em Saragoça. Deus queria que a semente que ia lançar sobre a terra a 2 de Outubro de 1928, encontrasse um coração de sacerdote preparado a fundo para a acolher e fazer frutificar. Por isso, grato a Nosso Senhor, S. Josemaria afirmava que a sua vocação era – deixai-me que insista – a de ser sacerdote, só sacerdote, sempre sacerdote. Amava com loucura esta condição que, configurando-o com Cristo, o havia preparado para ser instrumento, nas mãos de Deus, para a fundação do Opus Dei.

Dom e tarefa

Ao enumerar as condições dos candidatos ao sacerdócio, antigamente prescrevia-se que deveriam ser escolhidos entre homens que levassem uma vida honesta. Esta norma, minimalista e já superada, parecia muito pobre a S. Josemaria. «Entendemos, com toda a tradição eclesiástica – escrevia em 1945 –, que o sacerdócio pede – pelas funções sagradas que lhe competem – algo mais que uma vida honesta: exige uma vida santa em que o exerce, constituídos – como estão – em mediadores entre Deus e os homens»


Josemaria Escrivá tinha recebido, no seio da sua família e no colégio, uma formação profundamente cristã, que incluía o conhecimento da doutrina, a frequência dos sacramentos, a preocupação concreta pelas necessidades espirituais e materiais das pessoas, como referem diversas testemunhas daquela época. Ao receber a chamada divina para o sacerdócio, a sua existência mudou radicalmente, no sentido de que aumentou a intensidade e frequência da sua intimidade com Deus e a sua preocupação com os outros. Isto levou-o a uma maturidade não adequada à idade que tinha, mas sobrenaturalmente lógica. Cumpria-se na sua vida o que afirma a Sagrada Escritura: super senes intellexi quia mandata tua servavi 4, sou mais sagaz que os idosos, porque observo os teus preceitos. Desde aqueles pressentimentos, o adolescente Josemaria começou a tomar a sério a santidade, procurando conhecer e cumprir fidelissimamente a Vontade de Deus....


Como membros do Corpo Místico de Cristo, em que fomos enxertados pelo Baptismo, todos fomos santificados com radicalidade: trazemos em nós o gérmen e início da vida nova que Cristo nos ganhou com a sua Morte e a sua Ressurreição. A consagração baptismal é a realidade fundamental do chamamento à santidade em todos os géneros de vida. Deste ponto de vista, atendendo à absoluta gratuidade daquilo que recebemos, a santificação surge claramente na sua dimensão de dom: um presente imerecido que o nosso Pai-Deus nos dá, em Cristo, pelo Espírito Santo. Ao mesmo tempo, a santificação é uma chamada pessoal, uma tarefa que se outorga à responsabilidade da cada cristão. S. Josemaria dirá que é obra de toda a vida 6.

A santidade é, pois, dom e tarefa. Entrega gratuita de um bem imerecido e, ao mesmo tempo, encargo que devemos levar até ao fim com esforço pessoal, com correspondência heróica, empenhando-nos num verdadeiro compromisso de vida cristã.

A santidade sacerdotal como dom

Ao ser uma única a condição radical de todos os baptizados, todos – sacerdotes e leigos – somos chamados de igual modo à plenitude da vida cristã. «Não há santidade de segunda categoria: ou existe uma luta constante por estar na graça de Deus e ser conformes a Cristo, nosso Modelo, ou desertamos dessas batalhas divinas. Nosso Senhor convida-nos a todos, para que cada um se santifique no seu próprio estado»

Estamos face a uma das intuições fundamentais que S. Josemaria Escrivá pregou, por encargo divino, desde 1928. Ao fundar o Opus Dei, o Senhor mostrou-lhe que cada pessoa deve procurar santificar-se no próprio estado, no género de vida em que foi chamado, no seu próprio trabalho e através do seu próprio trabalho, segundo a conhecida expressão de S. Paulo: permaneça cada um naquele estado em que Deus o chamou (1 Cor 7, 20).


A santidade, nos sacerdotes e nos leigos, edifica-se, portanto, sobre o mesmo fundamento: a consagração originária do Baptismo, aperfeiçoada pela Confirmação. Contudo, é evidente que o dever de alcançar a santidade urge especialmente o sacerdote, que foi tomado de entre os homens, no que se refere a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados (Hb 5, 1).


«Em contínuo contacto com a santidade de Deus – escreveu João Paulo II – o próprio sacerdote deve tornar-se santo. É o seu próprio ministério que o obriga a uma opção de vida inspirada no radicalismo evangélico» 8. E acrescenta no livro Dom e Mistério, escrito pela ocasião do quinquagésimo aniversário da sua ordenação sacerdotal: «Se o Concílio Vaticano II fala da vocação universal à santidade, no caso do sacerdote é preciso falar de uma especial vocação à santidade. Cristo precisa de sacerdotes santos! O mundo de hoje reclama sacerdotes santos! Só um sacerdote santo se pode tornar, num mundo cada vez mais secularizado, uma testemunha transparente de Cristo e do seu Evangelho. Só assim é que o sacerdote pode tornar-se guia dos homens e mestre de santidade»


O sacerdote foi consagrado duas vezes para Deus: no Baptismo, como todos os cristãos, e no sacramento da Ordem. Por isso, se não se pode falar de santidade de primeira ou de segunda categoria – porque todos somos convidados à perfeição com a que o Pai celestial é perfeito (cfr. Mt 5, 48) – não há dúvida de que sobre os sacerdotes recai especialmente o dever de aspirar à santidade. Releiamos umas palavras do Fundador do Opus Dei que resultam especialmente clarificadoras. «Todos os cristãos podem e devem ser, não já alter Christus, mas ipse Christus: outros Cristos, o próprio Cristo! Mas no sacerdote isto dá-se imediatamente, de forma sacramental»


No exercício do ministério para o qual foi ordenado, encontra o sacerdote o alimento da sua vida espiritual, o material que o faz arder no amor de Deus. Por isso, seria um grave erro se outras aspirações ou outras tarefas esbatessem na sua alma o que, para ele, se concretiza em algo de indispensável para alcançar a santidade: a celebração cuidadosa e cheia de amor do Sacrifício da Missa, a pregação da Palavra de Deus, a administração dos sacramentos aos fiéis, especialmente o da Penitência; uma vida de oração constante e de penitência alegre; o cuidado das almas que lhe são confiadas, junto com os mil um serviços que uma caridade vigilante sabe dispensar.


Desde que intuiu a chamada para o sacerdócio, e mais explicitamente, desde que foi ordenado sacerdote, S. Josemaria quis identificar-se com Cristo, ser o próprio Cristo, no exercício do ministério sacerdotal e em toda a sua existência. Daí a sua vida de oração, a sua celebração pausada da Missa, a sua “necessidade” de permanecer longos momentos junto ao Sacrário; e, ao mesmo tempo, a sua urgência em procurar as almas para as conduzir a Cristo, por caminhos de santidade. Compreendeu que se pode e se deve levar um comportamento santo em todos os estados da vida, e concretamente no matrimónio; por isso, desde os seus primeiros anos como pastor, além de encaminhar muitas pessoas pelo caminho do celibato apostólico assumido com verdadeira alegria, animou muitas outras a descobrir a dignidade da vocação matrimonial.


Escreve João Paulo II: «Posso dizer que se encontra cada dia mais, naquele Mysterium fidei, o sentido do próprio sacerdócio. Ali está a medida da resposta que tal dom requer. O dom é cada vez maior! E é maravilhoso que assim seja. Bom é que um homem não possa dizer nunca que já correspondeu plenamente ao dom. É um dom e também uma tarefa: sempre! Ter consciência disto é fundamental para se viver plenamente o próprio sacerdócio»

S. Josemaria Escrivá celebrava cada dia a Santa Missa com paixão de enamorado, bem consciente de que «pelo sacramento da Ordem, o sacerdote torna-se efectivamente apto para emprestar a Nosso Senhor a voz, as mãos, todo o seu ser» 12. Reparai como descrevia numa reunião familiar esse misterioso eclipse da personalidade humana do presbítero, que nesses momentos se converte em instrumento vivo de Deus:


«Chego ao altar e a primeira coisa em que penso é: Josemaria, tu não és Josemaria Escrivá de Balaguer (…): és Cristo. Todos os sacerdotes somos Cristo. Eu empresto ao Senhor a minha voz, as minhas mãos, o meu corpo, a minha alma: dou-lhe tudo. É Ele quem diz: isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue, é ele que consagra. Se não, eu não poderia fazê-lo. Ali renova-se de modo incruento o divino Sacrifício do Calvário. De maneira que estou ali in persona Christi, fazendo as vezes de Cristo. O sacerdote desaparece como pessoa concreta: o P.e Fulano, o P.e Beltrano ou Josemaria… Não Senhor! É Cristo»

A santidade sacerdotal como tarefa

A grandeza incomparável do sacerdote fundamenta-se na sua identificação sacramental com Cristo, que o leva a ser ipse Christus e a actuar in persona Christi capitis, sobretudo na celebração eucarística e no ministério da Reconciliação. «Uma grandeza emprestada, compatível com a minha pequenez. Peço a Deus Nosso Senhor que nos dê, a todos os sacerdotes, a graça de realizar santamente as coisas santas, de reflectir, também na nossa vida, as maravilhas das grandezas de Nosso Senhor»


Cada cristão deve procurar que a sua condição de seguidor de Jesus Cristo se reflicta em toda a sua conduta: na família, na profissão, na actividade social, pública, desportiva… Também na existência concreta do sacerdote, na sua vida diária, deve manifestar-se a sua específica relação com Cristo. Pelo carácter indelével recebido na ordenação, é-se sacerdote durante as vinte e quatro horas do dia, não só nos momentos em que exercita expressamente o ministério. Convém tê-lo muito presente na época actual, quando vão desaparecendo – da nossa sociedade multicultural e multi-religiosa – tantos sinais que recordavam aos nossos antepassados a primazia de Deus e da vida sobrenatural. Não o digo com pessimismo, mas sim com ânimo de que nos esforcemos para que não se percam as raízes cristãs do nosso povo, que se manifestam também em tradições piedosas, em elementos da cultura, da arte e dos costumes.


O sacerdote deve chegar à meta da santidade, como por um plano inclinado, sob a direcção do Espírito Santo, que é quem modela nos filhos adoptivos de Deus os traços de Jesus Cristo. Neste processo, que dura toda a vida, junto com a acção sobrenatural da graça, é decisiva a resposta dócil da criatura.


Sem esforço por praticar as virtudes, sem luta por desenvolvê-las todos os dias, com constância, não é possível a santidade. Em que se centram os hábitos virtuosos que hão de estruturar a santidade do sacerdote? No mesmo que nos demais fiéis, pois todos somos chamados a meta idêntica – a união com Deus – e dispomos dos mesmos meios para alcançá-la. A diferença apoia-se no modo de exercitar essas virtudes. No sacerdote, tudo deve cumprir-se sacerdotalmente; quer dizer, tendo sempre presente a finalidade da sua vocação específica, o serviço às almas. Temos de seguir o exemplo do Senhor, que afirmou de si mesmo: Eu consagro-Me por eles, para eles serem também consagrados na verdade (Jo 17, 19).

Torna-se impossível, neste breve tempo, expor uma súmula completa das virtudes sacerdotais. Limitar-me-ei a apresentar algumas que considero capitais no ensino e no exemplo de S. Josemaria.

Virtudes humanas do sacerdote

Utilizando a metáfora da construção – imagem de raízes bíblicas –,o que primeiro se procura é um terreno sólido. O próprio Cristo alude a esta necessidade, na conclusão do Sermão da Montanha, quando fala do homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha, de modo que, quando chegaram os ventos e as chuvas, nada puderam contra essa casa (cfr. Mt 7, 24-25).


Na vida espiritual do cristão, o terreno sólido do edifício espiritual configura-se pelas virtudes humanas, pois a graça pressupõe sempre a natureza. Convém não esquecer que o sacerdote não deixa de ser homem ao receber a ordenação. Pelo contrário, precisamente por ter sido escolhido dentre os homens e constituído mediador entre os homens e Deus (cfr. Hb 5, 1), necessita cuidar a sua preparação humana, que o torna mais capaz de servir melhor as almas.

«Compreende esta formação – escreve Mons. Álvaro del Portillo – o conjunto de virtudes humanas que se incluem directa e indirectamente nas quatro virtudes cardeais, e a bagagem de cultura não eclesiástica indispensável para que o sacerdote possa exercer com facilidade – ajudado, evidentemente, pela graça – o seu apostolado» 15. O meu predecessor à frente da Prelatura do Opus Dei realça os motivos principais que devem levar o sacerdote a adquirir e a desenvolver estas virtudes: «O primeiro, como parte da luta ascética normalmente necessária para chegar à perfeição; o segundo, como meio para exercitar com maior eficácia o apostolado»



Na vida e nos ensinamentos de S. Josemaria, é claro este aspecto basilar da formação cristã e da especificamente sacerdotal. Temos numerosas provas desta afirmação, desde a sua infância até ao seu falecimento em 1975. As testemunhas do seu trabalho pastoral são unânimes ao descrevê-lo como um sacerdote enamorado de Jesus Cristo, entregue ao serviço das almas, com uma personalidade forte e harmoniosa, na qual o humano e o sobrenatural se fundiam estreitamente em unidade de vida. Pelo que se refere aos seus ensinamentos, resulta paradigmática a homilia “Virtudes humanas”, recolhida no livro Amigos de Deus, onde assenta o fundamento teológico da necessidade de cultivar as virtudes humanas: a profundidade da Encarnação do Verbo, perfeito Homem sem deixar de ser perfeito Deus. Nessa homilia analisa as principais virtudes que um cristão e um sacerdote devem cultivar: a fortaleza, a serenidade, a paciência, a laboriosidade, a ordem, a diligência, a veracidade, o amor à liberdade, a sobriedade, a temperança, a audácia, a magnanimidade, a lealdade, o optimismo, a alegria.


D. Javier Echevarría, Prelado do Opus Dei
fonte : www.josemariaescriva.info

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